André Gago


Who’s There?  
Uma das coisas que me mantém vivo — estar vivo é apenas uma das muitas formas de irmos dando cabo de nós — é esta surpreendente crença naquilo que se poderia comparar a um milagre, mas bastante mais plausível do que um milagre, por dispensar o artifício engenhoso, mas redutor, da religião: faria, simplesmente, todo o sentido que me batesses agora à porta. Seria, aliás, a única coisa que faria algum sentido, afinal, porque daria enfim sentido a tudo. Para ti, e para mim. Tu sabes que é assim. Mas, entre o instinto, que te deixa de pé atrás, e a intuição de uma bela coisa, hesitas, sabendo todavia que assim sobreviverás, pela certa. Passamos bem sem aquilo que parece poder ser uma má ideia. Mas as boas ideias precisam de tempo, e eu talvez já cá não esteja quando tu bateres à porta. Talvez nem tu cá estejas então, quando essa evidência amadurecer por si. E, no entanto, a ruína de tudo exaltará a espera desse instante, maior do que o tempo, maior até do que o amor que se possa encontrar nos seus escombros. O que poderia ter sido. O que deveria ter sido. O que foi, ainda, mas sonhado apenas. Não saberia prometer-te o amanhã, se agora batesses à minha porta (como devias, porque te espero, incansável). Mas sei exactamente como será se não vieres nunca, e viveria feliz, talvez, se o não soubesse.




Texto : André Gago
Foto : Estelle Valente

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Nuno Miguel Guedes


Nuno Miguel Guedes


Era a grande noite da tempestade.
Talvez tenha sido o único a vê-lo, entre os brilhos baços das vidas ao abandono. Saiu da multidão como um náufrago é expulso pela maré que o lança na praia, o balcão uma ilha desejada. Desajeitado como todos os perdedores, acendeu um cigarro e quase sussurrou o pedido de uma cerveja.
Depois olhou em volta. Ao longe conseguia perceber-lhe no olhar o desespero manso de quem vê em todos os desconhecidos a solução das mais secretas angústias. Lembrei-me estupidamente de uma frase de um livro antigo que já não suporto: “No meio da multidão há sempre a esperança de um rosto”, aforismo desbotado e incómodo mas que com surpresa verifiquei ser verdadeiro. Por isso, quando os nossos olhares se cruzaram senti uma espécie de reencontro. Com passo lento dirigiu-se a mim e a sua voz baixa mas grave destacou-se inesperadamente do pandemónio musical que lhe servia de cenário:
«Dói, não dói?», perguntou.
«Como? Desculpe, eu...»
«Dói. Eu sei que dói. Aquele olhar. Aquele instante.»
«Desculpe, se calhar conhecemo-nos mas...» balbuciei, agora também eu à deriva.
«Claro que nos conhecemos. Às vezes. Hoje, sim», respondeu enigmaticamente enquanto acendia outro cigarro. «Dói, não dói?», repetiu.
Procurei em vão por sinais de embriaguez ou ausência de sanidade temporária, algo que me garantisse toda a conversa ser um equívoco. Mas o que conseguia retirar era apenas uma bizarra sensação de familiaridade, que crescia a cada minuto. Até que, de forma natural disse
«Dói. Dói muito, em proporção directa com o tempo que passa. Dói tanto que procuro o maior número de pessoas na esperança que a dor se dilua, se desfaça entre tantos rostos felizes. Dói.»
O desconhecido sorriu, num assentimento triste: «O que custou mais? As últimas palavras? O eco das vozes que se afastam? O último olhar?»
«O ruído da porta a fechar-se sobre o meu rosto. O ruído mais definitivo que alguma vez ouvirei.»
«Amava-a muito, eu sei»
«Muito. Mas como sabe?»
Sorriu outra vez enquanto regressava docemente para o balcão, com os olhos de um cúmplice antigo.
«Sei porque somos o mesmo. Não iguais: o mesmo.». E desapareceu para sempre entre olhares e decibéis.
Nunca mais o encontrei porque também nunca mais o perdi. Da grande tempestade recordo então a hora clara em que pela primeira vez me conheci.


Texto : Nuno Miguel Guedes
Foto : Estelle Valente

João Silveira


João Silveira



Monday Sickness Blues

as mãos incham-me agarradas aos vestidos
dos piquenique incendiários
nas arcadas das urbanizações de parquet e vidros duplos,
o cigarro nas mãos a preto e branco,
o testemunho do nosso corpo sacralizado
em fotografias e folhas de papel,
odes a ser bichos que apontam sempre para o final do espaço,
derradeiros suicidonautas cheios de fome,

as mãos doem-me de segurar os vestidos
que balouçam num vento imparável
vindo de todas as janelas
das infinitas estradas para sul
do ar de uma boca para outra,
não sei o que se passou mas
a porta de casa aguarda-me, gulosa e furiosa,

tenho o resto da vida preso numa maçaneta,
os vestidos em fila
de A a Z
a narrarem cada promessa por cumprir
e o Allen pelas paredes
de pétalas e diamantes pela boca

Lord, Lord
I got the sickness blues
Must’ve done something wrong

: segunda-feira de rendas
e um altar em construção
em meu redor.

Texto :  João Silveira
Fotografia : Estelle Valente



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