João Pedro Azul


 


Estás em casa. Ainda que o teu cheiro se tenha tornado ténue e este não seja o teu silêncio, estás em casa. Vejo-te a fazer a mala. Estou sentada na beira da cama. Não fizemos amor nessa noite, amor. Estava cansada. Inútil cansaço, sei-o agora. Tu estavas feliz. Ia ser bom para ti. Bom para a tua carreira. A tua posição na empresa. Eu também estava feliz, por ti, amor. Estás em casa. Afinal eram só dez dias. O tempo voa. Eu sei, eu sei. O teu abraço — a minha casa. A nossa.

O tempo é uma coisa estranha. Parece-me agora que toda esta cena demorou dias. Dias inteiros. Longos. Vejo as tuas camisas, uma por uma. Estás em casa. Estás. Tão perto de mim. Fui levar-te ao aeroporto. Não havia trânsito, nessa manhã. Curioso. Talvez fosse cedo. Foi cedo, sim, amor. Um cedo esmagador. Estás em casa, e eu estou a chegar. Não consigo habitar este vazio sozinha. É demasiado largo. E esta dor tão estreita. Perdoa-me. Não te zangues comigo. Mas não consigo sobreviver ao horror. Estás em casa, é aí o meu lugar. Junto a ti. Minha vida, meu amor. Só tenho pena da Mimi que não pára de miar ao ver-me aqui suspensa nesta corda. Mas ela há-de sobreviver. Estás em casa. Abre-me a porta, amor.

Texto :  João Pedro Azul
Foto : Estelle Valente

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Catarina Santiago Costa


Catarina Santiago Costa

 


Sebenta (cygnus)
#1 A poesia é oriunda da fronteira matizada entre o essente e o escrito. Conheces o cisne esbracejante perseguido pelo negro como se à morte devesse tempo? #2 Sou o cisne tennysoniano que esbraceja agónico na fronteira matizada entre o essente e o escrito. A morte segue-me de perto como se lhe devesse tempo.
Texto :  Catarina Santiago Costa 
Foto : Estelle Valente

Carla Diacov


Carla Diacov


The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex.

num açougue abandonado nasceu
uma só folha de cipreste entre um tijolo solto e 
um gancho oxidado
uma mulherzinha está ali
do outro lado do balcão arruinado
ela quer a mostra do porco
ela quer estampar o avental as luvas
ela quer a carne da cor da folha do tempo
quantos minutos de forno?
pergunta 
tirando raízes e folhas
dos olhos 
quanto de abandono pra cada porco quilo?

Texto :  Carla Diacov 
Foto : Estelle Valente

Nuno F. Santos Cash


Nuno F. Santos Cash

 
Sempre que me torno num Domingo murcho de alegria. A saudade pode ser isso. Estar numa salamandra de campo com neve e cães de casota, currais com coelhos às dezenas lá fora dos azulejos e... lembrar-me do calor com a sombra dos pratos de plástico a Sul. O Sul pode ser isso. Não uma geografia nem sequer os meus pais a educarem-me com piqueniques nos fins-de-semana, à mais mínima luz. No Sul, onde há mar ou onde há longe do mar, há a sesta e o sentido do nada para uma criança. A não ser que queira ser isso de ser mais alto do que os poetas ou do que a cesta que levas como se a Leonor levasse alguma no que cantava Camões. Só me ficam as oliveiras e uma sombra à sombra de ti. Q.B. para o primeiro esfreganço, quantidade eterna para querer cheirar cabelos molhados e sentir falta... falta mesmo da pele lisa dos meus pais e da falta de sensibilidade deles nessa altura – o hoje é só a memória - para com uma criança que por entre as árvores e os gritos dos grilos diurnos não consegue ser criança. Como brincar se não há bombas nem batalhas? Não há escorregas nem super poderes que aguentem um Sul destes com comida antes da hora na ausência de relógios de parede e televisões ligadas. A preto e branco.
A burguesia amolece. A boa burguesia também, quando levantar-te a saia e beijar-te as bocas todas do corpo é o que mais queria quando crescesse e é o que mais quero neste momento quando parar de crescer até ao fundo da terra. Que seja sob as oliveiras.
Não te vejo em qualquer chão, só no chão das azeitonas verdes pequeníssimas... que as outras árvores nem interesse me suscitam, porque lembrar-me de ti e da tua anca nua, lembrar-me de ti e das meninas nos teus olhos é ser amor em tesão e tesão todo no amor impossível. És tão diferente de tudo o que cresce e é centenário... e milenar, apenas milenar provavelmente, és então cabelo seguro, escorrido com a cesta por entre os piqueniques da minha família. A Gioconda da modernidade, a rapariga de pérola sem brinco e que fazia piqueniques sozinha.
Passaram milhões de segundos e escondo-me ainda de embaraço, mas guardo-te assim, sem mostrares uma ruga que seja. Por enquanto. É a beleza da eternidade. Não ficarmos iguais mas ficarmos sempre como imaginamos. Pode ser isso a eternidade. O meu sonho requere um prolongamento da memória. Também desejo esse dia de rugas. O dia em que possamos ser da mesma altura, e pode ser um Domingo... que eles fazem esse sentido de me deixar com a tua falta. E contente. E triste. No campo. A querer as oliveiras do Sul em ti. Pode ser isso a saudade. 

Texto :  Nuno F. Santos Cash
Foto : Estelle Valente

Gisela Casimiro


Gisela Casimiro


ALICERCE

À tua volta tudo em obras. É assim que sei qual de nós é o verdadeiro artista. Soubeste delegar para a cidade todos os fossos, a lama, os sinais, as barreiras e as campainhas de um alarme já não tão mudo. Tens escavadoras, guindastes e camiões à tua mercê. No meu exército só existo eu. A cidade não é mais do que a extensão do que te consumia tanto que não mais podias escondê-lo. A terra, revolta como o meu estômago, sempre que te vejo. Ou mesmo quando não te vejo. Pequenas instalações artísticas como templos para os teus fantasmas, mais do que para o teu Deus. 

Perigos vários. Protecções de plástico-cor-do-batom-preferido para andaimes enferrujados. Tábuas sem salvação possível. Nunca experimentei um capacete, sabes? Penso sempre que não me servem e, no entanto, arrisco mais do que todos os outros. Como agora, por exemplo. Sei bem que não faço parte das tuas preces e, no entanto, visitei uma igreja em reconstrução interior, no dia em que nos conhecemos. 

O cigarro no canto direito da boca luminosa, eu que não fumo, eu que caibo nas tuas roupas e que com elas me passeei por toda a parte, eu que murmurei o teu nome tantas vezes antes de dormir, como quem acredita, eu que continuo a coleccionar as fitas das minhas camisolas e vestidos sem saber se alguma vez as atarei aos teus cabelos. Eu aqui, sem botas, sem luvas, sem óculos. Eu, sem colete e sem licença, encaro-te. A noite é uma máscara que usamos à vez. 

Texto :  Gisela Casimiro
Foto : Estelle Valente

Ana Sofia Paiva


Ana Sofia Paiva

Breve

Ela volteia no lago do muro. 
É um cisne de asfalto. 
Ela assombra, é sombra glamorosa, adumbrada
na parede turmalina dos meus olhos,
espraiando o meu coração inteiro pela calçada 
em piruetas de carvão.

Ela ateia um circo de sonho na praça dos meus olhos,
sem plumas de Paris.
É no meu quarto que ela dança,
que ela avança,
que ela diz: 
“Breve.” 

Ela dança na rua, pelos becos da calma.
Ela dança luas de cinza no teatro da alma.
Ela salta, ela exalta à luz da ribalta, ela diz: 
“Breve!” 

Ela falta. 
Ela falta. 

Infinita vai a noite, e sossegadamente leve.

Leio as águas, leio o vento, 
leio em cada movimento de lentura 
o perfume de uma ausência. 

Voará. 
E eu, corpo dançado de tantas passagens, rio 
escorrendo na clepsidra de algum porto, resistirei.

Breve sou, breve sejas. 
Breve seja a dor até ao fim do mundo.


Texto : Ana Sofia Paiva
Foto : Estelle Valente

Sónia Oliveira


Sónia Oliveira

imersão

tu sabes que nunca hesitei em mergulhar sem suporte de vida, levar ao limite o fio de luz que ia libertando com um rigor de ourives, para emergir com as mãos cheias de esponjas e de corais vermelhos. descer a noventa pés e regressar. cinco minutos de apneia. sem outro peso que não o meu próprio peso e o peso de todas as respirações que por mim ficavam suspensas. sabes que o mar me amava, que me despia do corpo, que me recebia inteiro com a sua pele salgada e me conduzia, com o seu movimento, àquele outro mar que trago dentro de mim. que ainda trago. dentro.

eu sei que era o meu perfil que desenhavas na areia molhada, enquanto esperavas que eu regressasse, ainda um pouco inebriada com o iminente exaurir da luz. era por isso que ficava tanto tempo com a tua mão nas minhas. queria perceber como é que cada um dos meus riscos se fixara na ponta dos teus dedos, como é que o teu braço decorou o meu contorno, que movimento era esse que me arrancava de dentro de ti.


gosto de lavar a loiça com música. não importa o que se faça, tudo é melhor com música. gosto de lavar os pratos e os copos por onde havemos de comer e beber tantas vezes. sentir com o tacto se está tudo limpo, porque a luz é pouca. gosto de pouca luz em casa. de ter todos os sentidos concertados para me devolverem o mundo, me aplacarem o mar, me redesenharem a sombra. ao lado, na sala, vais esboçando o presente de um traço. desenhas olhos e asas, corais vermelhos abandonados na praia. acabaremos a noite numa só silhueta, fundidos com a casa, despidos de paredes, inteiros.

Texto : Sónia Oliveira
Foto : Estelle Valente

Cristina Nobre Soares


Cristina Nobre Soares




Lembro-me pouco daquela vida. Lembro-me que era uma vida com uma varanda de ferro forjado e retorcido. Talvez pelo tempo. Lembro-me que a vizinha do primeiro esquerdo chegava sempre às seis e vinte. Era uma mulher de cabelo crespo e usava um casaco azul clarinho com cotoveleiras de bombazina a taparem o coçado. Lembramo-nos sempre de coisas que não interessam para podermos esquecer as que nos doem. Lembro-me que o candeeiro da rua acendia às sete menos dez. De Inverno. Porque de Verão não tinha hora certa. De Verão não é preciso. Lembro-me que as portadas verdes do meu quarto chiavam quando as fechava. Por isso deixava-as sempre entreabertas, para deixar entrar o fresco da noite, dizia. Lembro-me de pensar, um dia vou mandar pôr uns estores, daqueles que deixam entrar fiozinhos de luz da manhã pelos buracos de plástico. Lembro-me que o vizinho do rés-do-chão, que era reformado da marinha, me dizia, tem de ver daquelas portadas, com a ladroagem que para aí anda, todo o cuidado é pouco. Lembro-me do silêncio. De não estares. De não estares. E do silêncio. Lembro-me de esperar uma qualquer coisa que nunca me batia à porta. Também não importa. Já não moro lá. Arrendei uma outra vida, só com duas assoalhadas e estores eléctricos. Fica na periferia do que quis. A uma hora de carro do que fomos.

Texto : Cristina Nobre Soares
Foto : Estelle Valente

André Gago


André Gago

Who’s There?  
Uma das coisas que me mantém vivo — estar vivo é apenas uma das muitas formas de irmos dando cabo de nós — é esta surpreendente crença naquilo que se poderia comparar a um milagre, mas bastante mais plausível do que um milagre, por dispensar o artifício engenhoso, mas redutor, da religião: faria, simplesmente, todo o sentido que me batesses agora à porta. Seria, aliás, a única coisa que faria algum sentido, afinal, porque daria enfim sentido a tudo. Para ti, e para mim. Tu sabes que é assim. Mas, entre o instinto, que te deixa de pé atrás, e a intuição de uma bela coisa, hesitas, sabendo todavia que assim sobreviverás, pela certa. Passamos bem sem aquilo que parece poder ser uma má ideia. Mas as boas ideias precisam de tempo, e eu talvez já cá não esteja quando tu bateres à porta. Talvez nem tu cá estejas então, quando essa evidência amadurecer por si. E, no entanto, a ruína de tudo exaltará a espera desse instante, maior do que o tempo, maior até do que o amor que se possa encontrar nos seus escombros. O que poderia ter sido. O que deveria ter sido. O que foi, ainda, mas sonhado apenas. Não saberia prometer-te o amanhã, se agora batesses à minha porta (como devias, porque te espero, incansável). Mas sei exactamente como será se não vieres nunca, e viveria feliz, talvez, se o não soubesse.




Texto : André Gago
Foto : Estelle Valente

Nuno Miguel Guedes


Nuno Miguel Guedes


Era a grande noite da tempestade.
Talvez tenha sido o único a vê-lo, entre os brilhos baços das vidas ao abandono. Saiu da multidão como um náufrago é expulso pela maré que o lança na praia, o balcão uma ilha desejada. Desajeitado como todos os perdedores, acendeu um cigarro e quase sussurrou o pedido de uma cerveja.
Depois olhou em volta. Ao longe conseguia perceber-lhe no olhar o desespero manso de quem vê em todos os desconhecidos a solução das mais secretas angústias. Lembrei-me estupidamente de uma frase de um livro antigo que já não suporto: “No meio da multidão há sempre a esperança de um rosto”, aforismo desbotado e incómodo mas que com surpresa verifiquei ser verdadeiro. Por isso, quando os nossos olhares se cruzaram senti uma espécie de reencontro. Com passo lento dirigiu-se a mim e a sua voz baixa mas grave destacou-se inesperadamente do pandemónio musical que lhe servia de cenário:
«Dói, não dói?», perguntou.
«Como? Desculpe, eu...»
«Dói. Eu sei que dói. Aquele olhar. Aquele instante.»
«Desculpe, se calhar conhecemo-nos mas...» balbuciei, agora também eu à deriva.
«Claro que nos conhecemos. Às vezes. Hoje, sim», respondeu enigmaticamente enquanto acendia outro cigarro. «Dói, não dói?», repetiu.
Procurei em vão por sinais de embriaguez ou ausência de sanidade temporária, algo que me garantisse toda a conversa ser um equívoco. Mas o que conseguia retirar era apenas uma bizarra sensação de familiaridade, que crescia a cada minuto. Até que, de forma natural disse
«Dói. Dói muito, em proporção directa com o tempo que passa. Dói tanto que procuro o maior número de pessoas na esperança que a dor se dilua, se desfaça entre tantos rostos felizes. Dói.»
O desconhecido sorriu, num assentimento triste: «O que custou mais? As últimas palavras? O eco das vozes que se afastam? O último olhar?»
«O ruído da porta a fechar-se sobre o meu rosto. O ruído mais definitivo que alguma vez ouvirei.»
«Amava-a muito, eu sei»
«Muito. Mas como sabe?»
Sorriu outra vez enquanto regressava docemente para o balcão, com os olhos de um cúmplice antigo.
«Sei porque somos o mesmo. Não iguais: o mesmo.». E desapareceu para sempre entre olhares e decibéis.
Nunca mais o encontrei porque também nunca mais o perdi. Da grande tempestade recordo então a hora clara em que pela primeira vez me conheci.


Texto : Nuno Miguel Guedes
Foto : Estelle Valente

João Silveira


João Silveira



Monday Sickness Blues

as mãos incham-me agarradas aos vestidos
dos piquenique incendiários
nas arcadas das urbanizações de parquet e vidros duplos,
o cigarro nas mãos a preto e branco,
o testemunho do nosso corpo sacralizado
em fotografias e folhas de papel,
odes a ser bichos que apontam sempre para o final do espaço,
derradeiros suicidonautas cheios de fome,

as mãos doem-me de segurar os vestidos
que balouçam num vento imparável
vindo de todas as janelas
das infinitas estradas para sul
do ar de uma boca para outra,
não sei o que se passou mas
a porta de casa aguarda-me, gulosa e furiosa,

tenho o resto da vida preso numa maçaneta,
os vestidos em fila
de A a Z
a narrarem cada promessa por cumprir
e o Allen pelas paredes
de pétalas e diamantes pela boca

Lord, Lord
I got the sickness blues
Must’ve done something wrong

: segunda-feira de rendas
e um altar em construção
em meu redor.

Texto :  João Silveira
Fotografia : Estelle Valente



Teresa Lopes Vieira


Teresa Lopes Vieira






A mãe das coisas

Escreve uma cena
disse ela
escreve um poema, um conto ou uma fábula.
Então eu resolvi falar um pouco sobre a tua vida, sabes, aquela das doze infâncias.

Quando ainda eras tão mais nua do que agora e te debruçavas nas árvores, corrias atrás dos patos. Lembro-me bem de como todos os animais de odiavam, por tu lhes infligires as maiores torturas. Alguns já eram mesmo capazes de detectar os teus passos ao longe, adiantando-se-lhes, fugindo. Ainda no tempo onde não te expunhas por aí, e poucos eram os que podiam dizer conhecer-te. Hoje, é difícil combater os que te pensam. São tantos.

Nessa altura, dizia-se que ao fundo daquele bosque havia a mãe das coisas. Ela gritava-nos a vida por entre o vento e depois nós decidíamos aceitar, se sim ou não, faríamos o que nos pedia. Lembro-me de que passávamos horas escutando o vento, à espera do seu próximo segredo. Graças a certas ordens, íamos crescendo mais um pouco. Mas era um crescimento brando e certo, uma evolução natural para jovens.
Certa vez, mandou-nos caçar meia-dúzia de perdizes. Mas nós nem o sabíamos fazer, por sermos novos demais. Mesmo assim, decidimos encher um saco de pedras e lá fomos, pelos caminhos ladeados de giestas e pinheiros. A verdade é que no fim do dia, tínhamos as ditas perdizes.
Foi graças a ela que te tornaste assim, não digas que não
(não digas nada)
de uma certa maneira, é a cada gesto e decisão tua que ela hoje se revela. As pessoas sabem que temos algo de diferente, sabem, só não conseguem dizer o quê.

Até que decidimos tentar ver a mãe das coisas. Foi difícil e tivemos de o fazer durante a noite, com medo de a assustar. Mas o nosso passo era certeiro.
Ao fundo de uma clareira
(lá bem no fundo)
estava ela, iluminada por dois grandes holofotes. Caiam-lhe estrelas pelos braços e olhava para a frente, não nos viu. No seu peito efervesciam letras, e percebi que eram as histórias de todos nós, que lhe passavam lentamente por cima.

Ser-se mãe é uma carga da trabalhos – lembrei-me de pensar na altura. E é por isso que nos ignora. Uma mulher, se for mesmo mulher
(o que é isso?)
vai estar demasiado ocupada para dar atenção aos problemas insignificantes dos outros. Parecia ser essa a lição que nos queria dar.
E a verdade é que guardei essa mensagem durante todo mim, para sempre. Hoje sou bem adulto e ainda vivo segundo esse lema.
Hoje sou bem adulto e tenho milhões de lemas.
É por esta altura que começas a achar que já há demasiadas personagens na minha história? Pois é, recapitulando: existo eu, tu, ela e a mãe das coisas.

E perguntas-te agora como sei disto
é porque a trago sempre encravada num abraço
aliás, somos todos um pouco
desta luz que lhe jorra das mãos. 


Texto : Teresa Lopes Vieira
Fotografia : Estelle Valente

Lara Franco


Lara Franco






Perversidade sonora

A incerteza que te dou é exacta. Tem dentro dos dedos a felicidade de deslizar sobre a tua superfície monstruosamente densa e imensurável. Tem na ponta da língua o desejo da maravilhosa surpresa destroçada. No desequilíbrio da perversidade dos teus olhos, as sobras de voz que te deixo não passam de gemidos. São sinais da cedência de passagem que o meu corpo rasga contra o grito, pelas noites obscuras e imprevisíveis, no limite do vazio a que me ofereces. Já te contei que a violência que existe, por entre a luz dos candeeiros de rua, quando o teu corpo me encontra, me obriga a dar-te as palavras às quais não sei chegar. Mas de nada serve dizer-te que quero modelar o mundo, encher os espaços de silêncio e suor para descansar depois contigo. Tenho fome, tanta fome de que me mereças, na construção da pele que depois de ti nunca mais será a mesma. Porque o meu corpo só se despe ao som exacto da mão que o torna mais vivo. E por isso hoje vou sacudir-te, mesmo sem saber se é isso que quero. Só porque preciso de te ver de copo sobre a mesa, lá em baixo. Pelo meio da confusão, enquanto tu sabes exactamente onde estás, eu canto para te perder no espaço. Para que morras tu, hoje, por baixo da minha sombra fria. Preciso deste palco.



Texto : Lara Franco
Fotografia : Estelle Valente

Sofia Cunha


Sofia Cunha




INÚTIL

Segura-me inútil, assim tombada de tudo e de nada.
Segura-me, inútil!
Segura-me ainda que de nada te sirva.
Somos iguais, tu e eu, não vês?
Abraça com força o inútil de mim.
Larga o resto que não sobra.
Não há que temer.
Deixa ao medo o nada que resta do que seguras,
é tão pouco o que te confio.
Não pode ser assim tão difícil,
um quase nada de gente,
levezinho.
Não há Cerélac capaz de engordar a gente que não sou.
Nasceu assim o bébé,
enfezado.
Nem com papas lá vai.
É só,
         atirar ao ar e voltar a agarrar
         atirar ao ar e voltar a agarrar
         atirar ao ar e voltar a agarrar....
         Só isso.
Vais ver como ri de felicidade,
ou lá do que riem os seres levezinhos...
É só isso que quer,
que o segures.
Nem que o atires,
que o segures.
Mas se para isso tiver de voar,
não se importa,
fecha os olhos com força e quando voltar a olhar,
já ri,
seguro.
Segura-o inútil, assim tombado no ar,
de cada vez que voa,
de cada vez que ri.
Segura-o inútil, assim tombado de tudo e de nada.
Inútil?
Não... levezinho, apenas.
Lembra-te,
                  atirar ao ar e voltar a agarrar
                  atirar ao ar e voltar a agarrar
                  atirar ao ar e voltar a agarrar....
Repara como ri.
Que importa se de felicidade ou se de outra fantasia qualquer?
Segura-me, inútil!
Ri-te, inútil!
Aproveita se te faço útil.

Texto : Sofia Cunha
Fotografia : Estelle Valente

Paula Cortes


Paula Cortes




ENSAIO SOBRE O OLHAR

I
A LUZ

                - Atenta: a luz é perigosa. 
Até àquela noite, toda a minha existência tinha sido levada como a de uma traça. Bastava despontar um feixe de luz. Qualquer foco era bastante para bater as asas na sua direcção. Quanto mais luz, mais vejo – pensava eu com a certeza idêntica àqueles que na idade média asseveravam a verdade da teoria geocêntrica (e hoje a heliocêntrica e amanhã a teoria que falará a falsa verdade em que os homens tanto gostam de acreditar). Rejubilava com a possibilidade da luz iluminar mais a realidade e esta afigurar-se a meus olhos nua, real e verdadeira. Os máximos de um carro a alta velocidade numa auto-estrada, a sinergia do vento a empurrar-me, o frio a cortar-me as asas, o barulho em progressão de um carro a passar na outra faixa, depois uma mota... as luzes iam e vinham... Mas eu seguia uma, aquela... Vinha na minha direcção, cada vez mais forte, em crescendo. Sabia que era esta a luz, era aqui que estava a verdade, cada vez mais próxima. O brilho a ofuscar-me! A adrenalina de ser eu a conseguir tocar-lhe, eu e não outra traça. Sim, haviam mais traças atrás de mim projectadas pela vontade de querer ver mais, mas eu ia chegar primeiro... Era agora, o carro aproximava-se. A luz, a luz, a luz... Eis a LUZ.  
        - Não desconfiava que luz a mais pudesse levar à cegueira. – Proferi eu, numa manhã escurecida sobre uma pálpebra aberta à infinita impossibilidade de ver. O alcatrão fervia sobre os cortes do meu corpo mole, desfeito e, enfim, esmagado pela roda do carro que passou.  

II. AS SOMBRAS

          Tal como uma traça segue a luz, eu sigo as sombras. Estas atestam a existência dos corpos. Sigo-as porque não mais creio na luz, que mata, mas também morre.
       A minha realidade raramente contém pontos de luz fortes, encontra-se antes temperada pelo negrume. Não sei se pelo acidente que aconteceu, se por os meus olhos insistirem buscar, quase compulsivamente, ver o que acreditam ser. E é certo que desacreditei na luz para crer em sombras. A claridade desviou-se do meu olhar e despontou ela mesma sobre o horizonte de outros mundos que não o meu – noutra realidade destinada a que outros supusessem que a luz iluminasse. Mas nem mesmo as sombras atestam a realidade.
       A realidade existe porque a sombra dilacera o enorme pano em que a luz cria formas e contornos, limites de existir – silhuetas. As silhuetas escondem a inexistência. São espaços com forma entre a luz, o vazio.
       Crer no vazio? Ou hei-de supor que a luz, por não ser vazio, me diz mais?
       O homem não gosta da vacuidade, do mistério ou da simples imprevisibilidade dos buracos, porque o incomodam. Por suposta segurança, mais lhe vale uma qualquer luz que se julgue fazer iluminar, pois responde à dúvida, ao medo de não ver, à angústia de pensar sobre o abstracto.  

III
A LUZ E A SOMBRA

        Suponho que a realidade, vista pelo corpo com que sou-no-mundo, não seja senão uma dialéctica entre luz e sombra.
      Nós acreditamos no que vemos. Segui a luz, como aquele homem supõe que a matemática explica por via de complexos malabarismos de números o mundo. Mas a luz não ilumina toda a realidade e é preciso não reificar e absolutizar a existência ao que é iluminado. Segui depois as sombras, porque talvez fossem a prova de que um corpo existe. Mas nem isto é certo, pois nem sempre existem sombras. Primeiro, é preciso haver escuridão. Depois, é preciso luz que a dissipe. Ora, que será da noite sem luz? Vazio. Nem sequer uma silhueta.
       Na realidade, entre a luz e a sombra, entre o vazio, entre a ideia de pensar-me existir, há uma silhueta em forma de cruz que me diz todos os dias que a minha existência é finita e fala-me em surdina ao ouvido acerca do absurdo que é viver para morrer. Esta forma vazia dá conta da urgência de haver tantos sentidos humanos, tantos jogos paralelos entre luzes e sombras, conferindo assim uma forma ao universo capaz de o explicar em si-mesmo.
       A luz, tal como a sombra, existirão sem saber o que iluminam ou que apagam. O homem, ávido por explicações, continuará a partir da realidade que vê como se esta se tratasse da realidade que uma traça vê ao seguir a luz. Ambos existem. Ambos morrerão. Talvez uma qualquer realidade continue subsistindo aquém e além, antes e depois de qualquer buraco negro traçado pela persistente intermitência da luz que nos cega de tanta e tão tonta racionalidade, ébria e sempre incompleta, como a sobra da cruz. 


Texto : Paula Cortes
Fotografia : Estelle Valente

Luís Osório


Luís Osório



ÉS UM VESTIDO

Quase parece um vestido.
Se o fosse, imaginá-lo-ia num cabide branco, em espera.
Inventaria então o mais brutal dos desejos: o de um corpo o poder habitar sem asfixiar de realidade.

No fundo dos fundos há uma porta invisível. Saberei reconhecê-la porque nenhuma outra é igual. Não a vejo, imagino-a como uma palavra de um alfabeto privado.

A porta invisível que mais parece um vestido creme, em espera.

Sigo em frente. Ficarei cego para o conseguir ver. Um preço leve, quase nada. Um vestido que é uma porta de utopia, um desejo de liberdade que não é a liberdade, é outra coisa. Deixar de ver para ver. Um leve preço, quase nada.

Não sinto o que toco. Mas toco.
Parece ser a que sonhei.
Como se fosse possível o impossível. Como se no fundo dos fundos de mim, ela existisse.

Ela.
Uma porta.
Que é um vestido.
Que é um cabide dentro de uma palavra por existir.
Uma liberdade que não é liberdade, é mais.
Que é tudo. Um amor sem tédio ou passado. Apenas isso e tudo isso.

Quase parece um vestido dentro de uma porta.
Um vestido que me espera com uma palavra nova, nunca ouvida.
Uma palavra que será nossa.

Para sempre.

Mesmo que o sempre seja um breve hoje, seguirei.

Para dentro do vestido que imagino.
Para dentro dela.
No interior da utopia.
Agora que não vejo, vejo-a.
Entro.
Fico em espera.

À espera que perca a visão para me ver.
Seremos então o vestido. E descansaremos.

Texto : Luís Osório
Fotografia : Estelle Valente 

Luis Serra Santos


Luis Serra Santos



                                                        VERDE ESBATIDO EM MIM, DE TI


                                                        Sempre o Verde
                                                        Aquele Verde

                                                        Esse Verde que me persegue
                                                        Esse Esverdeado turvo
                                                        No Verdete que me desfaz
                                                        Na esperança que te faz
                                                        A única, em tom Verde
                                                        Turva, desvanecida
                                                        Esbatida, anestesiada
                                                        Em que te despes
                                                        E me aqueces
                                                        E arrefeces
                                                        Quando enfim espero
                                                        E despertas
                                                        Não o meu eu
                                                        Não o meu eu, em mim
                                                        Mas o meu eu, em ti
                                                        Sob uma chuva distante
                                                        Numa névoa esquecida
                                                        Num vale obscuro
                                                        Perto de ti
                                                        Em tons Verdes
                                                        Sempre o Verde
                                                        Aquele Verde
                                                        A mesma cor
                                                        De uma noite escura
                                                        Esverdeada, rara
                                                        Em que te conheci
                                                        E por ti roguei
                                                        A Deuses que nem Amo
                                                        Nem conheço, nem quero
                                                        Só por ti
                                                        E por ti pedi
                                                        Que fosses minha
                                                        A todos eles
                                                        Pelo menos, mais uma noite
                                                        Apenas uma
                                                        Uma noite Verde
                                                        Desfocada, que seja
                                                        Enevoada
                                                        Mas ainda assim, nossa
                                                        A nossa noite primaveril
                                                        Em terra, no céu, no mar
                                                        Mas para sempre, Verde
                                                        Sempre o Verde
                                                        Aquele Verde
                                                        A nossa cor
                                                        A tua única
                                                        A minha cor
                                                        A única cor
                                                        A única, em que eu
                                                        Sou apenas eu
                                                        Porque contigo
                                                        Ainda que num sonho
                                                        Um sonho Verde
                                                        É a única em que vivo
                                                        Respiro e sinto
                                                        E morro, contigo
                                                        Contigo ao meu lado
                                                        No fundo do mar
                                                        Procurando por ti
                                                        Sem respirar, enfim
                                                        Verde
                                                        Carregando esse tom
                                                        Essa cor
                                                        Para sempre
                                                        Sempre o Verde
                                                        Aquele Verde



Texto : Luis Serra Santos
Fotografia : Estelle Valente

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